CARACTERIZAÇÃO HISTÓRICA E GEOGRÁFICA

As Colchas de Castelo Branco ocorrem com uma singular abundância por toda a Beira Baixa, mas só são apercebidas como um conjunto único e precioso, no final do século XIX, aquando da visita do Rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia à cidade.

Com efeito, a propósito da inauguração da Linha da Beira Baixa em setembro de 189I, a cidade de Castelo Branco não só engalanou festivamente varandas e janelas, como, para acomodar Suas Majestades, o Palácio onde então funcionava a junta de Província, foi todo mobilado e decorado com o que de melhor a cidade podia oferecer. É assim que largas dezenas de colchas surgem em conjunto, utilizadas quer no exterior dos edifícios quer no interior do Palácio a revestir paredes e a emoldurar portas e janelas, formando um conjunto riquíssimo e inusitado que capta a atenção da Rainha"(. . .) que se mostrou muito satisfeita quando se lhe disse que aquelles trabalhos representavam uma (antiga) indústria de Castello Branco", conforme se pode ler num jornal da época.

António Roxo, que presenciou e relatou a admiração da rainha, é quem pela primeira vez utiliza a expressão “Colchas de Castelo Branco", num artigo publicado a 25 de outubro de 1891, pois o olhar da Rainha, a sua “especial atenção" pelas colchas, permitiram-lhe ter uma outra perceção, um outro entendimento sobre aquele conjunto de peças, que tantos naquela região possuíam e que, de tão comuns, a ninguém ocorria o quanto eram únicas e extraordinárias.

Todavia, foi só em junho de 1929, na 6ª sessão do IV Congresso Beirão, que as colchas e o seu bordado entraram na agenda da cidade de Castelo Branco. Nessa sessão, Maria Júlia Antunes apresentou a comunicação, “Rendas e Bordados da Beira", dedicando um terço da sua exposição aos bordados genericamente chamados "a frouxo", como então se designava o bordado das Colchas de Castelo Branco. Pela primeira vez surge um texto em que se descrevem as cores, os pontos usados e a organização dos vários tipos de desenho das Colchas de Castelo Branco. No final, Júlia Antunes apela enfaticamente à proteção das “indústrias populares" e à importância do seu relançamento.

Passados uns meses, em outubro, com a intenção de escrever um artigo mais desenvolvido sobre as Colchas de Castelo Branco, o que, infelizmente, não veio a acontecer, Júlia Antunes volta à cidade onde observa cerca de 30 colchas. Nessa visita é acompanhada por Manuel Paiva Pessoa, ex-director do Museu Francisco Tavares Proença Júnior, o qual, sobre este encontro e o trabalho então desenvolvido, publica de seguida um texto no jornal Terra da Beira, levando a muitas mais pessoas as teses de Maria Júlia Antunes, as quais ele próprio retoma e subscreve.

No essencial, considerava-se então que as colchas de desenho mais fruste, sem barra definida onde cravos abertos constituem o essencial dos motivos decorativos seriam as mais antigas, feitas no seio das “classes populares”. Estas colchas “plebeias" teriam captado a atenção das senhoras dos solares que as teriam enriquecido com um desenho mais cuidado e com maior variedade de motivos, pelo que as colchas "patrícias ou solarengas” seriam, não só mais sumptuosas e cuidadas, mas também mais recentes. E se Júlia Antunes, sobre as colchas, sublinha tratar-se de “uma notável indústria, hoje dolorosamente extinta e que teve por berço a cidade albicastrense”, Pessoa termina escrevendo "É, pois, ocasião de pensarmos a sério na restauração desta indústria".

À época, o bordado a seda frouxa sobre linho, continuava, todavia, a fazer-se, integrando os curricula que os colégios da cidade proporcionavam às meninas, cuja condição social lhes permitia frequentá-los. Como escreve Paiva Pessoa: “Nos Colégios Nacionais e 1° de dezembro, desta cidade, têm-se bordado muitas colchas destas e outras senhoras também as bordam”.

No entanto, a fazer fé no que escreve a exigente professora de lavores que foi Júlia Antunes, trata-se de um bordado de fraca qualidade, feito num contexto doméstico ou de aprendizagem: "forçoso é confessá-lo a técnica das colchas primitivas, tem sido deturpada, nos seus essenciais elementos característicos, (...) e, se não se acode com um estudo bem orientado ao que do antigo ainda se conhece, (…) corre-se o perigo de vermos totalmente perdida ou desfigurada uma arte de acentuada beleza". Paiva Pessoa acrescenta ainda: “Nada de futurismos extravagantes. É necessário que as colchas tenham a feição das antigas. De toda a conveniência seria também que a seda, empregando-se a nacional, fosse tinta pelos antigos processos de tinturaria portuguesa, com tintas vegetais inalteráveis”.

De facto, conscientes quanto aos possíveis problemas que se colocam no relançamento que advogam para o bordado, ambos se preocupam ainda com o desenho, com o modo como a seda é tingida, com a escolha das cores a utilizar e com o próprio “método” de bordar.

Esta situação continua durante os dez anos seguintes, mas, é durante este tempo que se estabelece, em definitivo, o prestígio e protagonismo cultural de Eurico Sales Viana. Em 1936 havia integrado o júri provincial que selecionou as aldeias candidatas a Aldeia mais Portuguesa de Portugal (o concurso do Secretariado da Propaganda Nacional, dirigido por António Ferro) e, com a vitória nacional de Monsanto (concelho de Idanha-a-Nova, distrito de Castelo Branco), da qual é um dos principais obreiros, o seu peso político sai reforçado, de tal forma que, juntamente com o etnógrafo Luís Chaves, é quem prepara, durante 1939-1940, a parte da Exposição do Mundo Português (realizada em Lisboa em 1940), dedicada à “etnografia da metrópole".

Nessa finalidade, Sales Viana, acompanhado por Luís Chaves, percorre, durante o mês de julho de 1939, a Beira Baixa vendo e apreciando mais de uma centena de colchas, não sendo de estranhar que, logo a 5 de agosto, publique, no semanário "A Beira Baixa" (n.º 121), o texto “As Colchas de Noivado”, um artigo com tal sucesso que logo é feita uma separata para garantir uma maior divulgação.

Nesse texto, as Colchas de Castelo Branco são entendidas como “colchas de noivado" e, tanto Sales Viana, como Luís Chaves coincidem num mesmo discurso sobre as colchas, fortemente condicionado pelos valores ideológicos que ambos partilham.

As colchas, escrevem, correspondem a peças únicas que raparigas solteiras, virgens, bordam sobre o linho, que elas próprias fiaram e teceram e com a seda que as mesmas produziram, com a finalidade de servirem uma só vez, no dia dos respetivos esponsais, após o que seriam guardadas. Ambos insistem na importância do simbolismo dos motivos que decoram as colchas em que “romãs, pinhas e cachos entoam hinos à União da Família”; “(os) lírios se manifestam alegremente numa apoteose à Virgindade”, ou "(os) galos estilizados aludem à virtude fálica da Virilidade”, exemplos evidentes quanto à natureza ideológica deste discurso, o qual traduz uma específica visão da família que o regime de então defendia e promovia.

É também em 1940 que o Presidente da Junta Provincial, Padre Ribeiro Cardoso, preocupado com a situação económica, funda uma Escola de Bordados da Província da Beira Baixa, vendo no relançamento da produção de colchas bordadas uma hipótese de criar emprego. Com a supervisão artística de Sales Viana e com Deolinda Riscado como mestra de bordado, a Escola começa a funcionar. No entanto, Ribeiro Cardoso logo se apercebe da dificuldade na obtenção de seda natural necessária ao Bordado de Castelo Branco, agora que a II Grande Guerra grassa por quase toda a Europa, pelo que promove uma grande campanha de plantação de amoreiras como um meio de obviar a falta da seda. A campanha arranca, mas o ciclone de fevereiro de 1941 destrói, não só as jovens plantações como muitas das amoreiras já existentes, pelo que a Escola acaba pouco depois, em agosto.

Entretanto, no contexto das Comemorações dos Centenários (1140 e 1640), realizam-se, por todo o país, exposições enaltecendo as produções mais icónicas de cada região, pelo que, em Castelo Branco, em 1941, acontece uma extraordinária exposição de colchas, quase cem, que mobilizam a atenção das elites locais, de tal forma que, no ano seguinte algumas dessas colchas são expostas em Lisboa, por iniciativa do Secretariado de Propaganda Nacional, e que a revista Panorama divulga a um público alargado.

Em 1945 surge mais um artigo na revista Panorama, enquanto Maria José Mendonça, com a colaboração de Maria Clementina Carneiro de Moura publica, no mesmo ano, no Catálogo da 5ª Exposição Temporária do MNAA, o artigo "Colchas Bordadas dos séculos XVII e XVIII", onde se apresentam exemplares das Colchas de Castelo Branco.

Em cinco anos o reconhecimento das Colchas de Castelo Branco tinha extravasado a esfera local e regional. As Colchas e o seu bordado eram agora conhecidos por uma elite desejosa de as obter. Assim, enquanto se sucediam artigos e exposições promovia-se, igualmente, a existência de oficinas produtoras que, satisfazendo a procura criada, permitissem a sua sustentabilidade.

Desde 1939 que, no Colégio de Nossa Senhora de Fátima, uma oficina de bordar patrocinada pela Mocidade Portuguesa Feminina (MPF) tentava dar resposta às solicitações do mercado. Todavia, a falta de seda e a dificuldade em escoar um produto caro levaram ao seu encerramento em 1945.

Somente no início dos anos 50 surge a Oficina Casa-Mãe a qual, fundada por Elísio José de Sousa, produz, divulga e vende, com sucesso, Colchas de Castelo Branco para um mercado que já não é só local, mas nacional e, até, internacional. A visão e perseverança de Elísio José de Sousa leva-o a dedicar-se à missão de produzir as Colchas de Castelo Branco para o que promove exposições em muitas cidades portuguesas, mas também em cidades como Londres, Paris, Milão, S. Paulo ou Luanda.

O prestígio da Casa-Mãe leva mesmo o Governo a encomendar ali as Colchas que são oferecidas a personalidades de grande destaque em visitas oficiais ao nosso País, tais como a Rainha Isabel II, a sua irmã, a Princesa Margarida, ou a mulher do Presidente da República do Brasil.

São estas duas oficinas, a do Centro número 2 da Mocidade Portuguesa Feminina e a Casa-Mãe de Elísio José de Sousa, as responsáveis pela formação das mais distintas mestras de bordar que, ao longo dos anos, ensinaram centenas de raparigas as quais por sua vez passaram o seu saber a outras. Aquelas que faziam parte da oficina da MPF acabaram por, em 1976, integrarem o quadro de funcionários do Museu Francisco Tavares Proença Júnior. A Casa-Mãe encerrou as suas portas em 1969 devido à morte do seu fundador. Mas o saber das suas bordadeiras frutificou nas muitas oficinas que, com maior ou menor dificuldade têm mantido até hoje a produção do Bordado de Castelo Branco.

Desde 2008, que um significativo grupo de colchas, até essa data consideradas de Castelo Branco, passaram a ser vistas como tendo sido produzidas em Lisboa. De facto, trata-se, não de colchas, mas de panos de armar, pois o seu comprimento é sempre superior a 280cm, algumas ultrapassando os 300cm. Além da dimensão, estas peças distinguem-se ainda pelo seu programa decorativo, com barra bem vincada e campo ocupado por um padrão repetitivo, em faixas, como num padrão de azulejo. Além do desenho denso e de grande perfeição, caraterizam-se estas peças pelo rigor do seu bordado e, em quase todas, aparece mesmo um ponto de bordar, de difícil execução (o ponto “galão de malha” a que as bordadeiras chamam “ponto recuperado”), que só foi utilizado em Portugal no final do século XVII, início do seculo XVIII, o qual não aparece em mais nenhum outro país.

As colchas de cravos abertos, pelo seu desenho mais solto, quase descuidado, parecem mais compatíveis com a sua produção na zona de Castelo Branco.

Há ainda um terceiro grupo de colchas, caracterizadas pelo seu desenho cuidado, sem barra, centros com várias tipologias, que poderão ter sido, ou não, ali bordadas.

A definição destes três grupos corresponde ao que a comunidade científica atualmente considera relativamente à origem das Colchas de Castelo Branco.

Todavia, para o caso do Bordado de Castelo Branco estas distinções não colhem, uma vez que desde os meados do século XX, no processo de relançamento da produção, todas estas peças foram consideradas como modelos do bordado que, entretanto, foi sendo produzido. Resulta deste facto que a panóplia de padrões e de motivos se alargou consideravelmente. Como o que se está a certificar é um bordado e não uma tipologia de peças, não parece sequer sensato, passado todo este tempo, querer reconduzir o bordado de Castelo Branco àquela matriz mais restrita, baseada unicamente nas peças que, com pouca ou nenhuma dúvida, são efetivamente consideradas terem sido bordadas na região polarizada por Castelo Branco.

Assim, passados mais de 80 anos sobre o reinício da produção oficinal do Bordado de Castelo Branco, é então, possível, uma outra crítica e distanciamento pelo que dever-se-á distinguir entre “Colchas de Castelo Branco" e "Bordado de Castelo Branco". A primeira expressão cobre o conjunto de peças históricas, produzidas essencialmente no século XVIII (aquelas datadas do final do século XVII, não foram ali feitas, mas em Lisboa). Destas peças há a considerar a possibilidade de que, algumas, poderão não ter sido produzidas em Castelo Branco. No entanto, no estado atual dos nossos conhecimentos, tal não é possível de afirmar. Nem de infirmar.

O Bordado de Castelo Branco, atividade que desde há oitenta anos mobilizou na cidade e região, largas centenas de bordadeiras, corresponde assim a uma produção de bordado a seda natural sobre linho, feita segundo um conjunto eclético de modelos, trabalhados ainda de um modo muito solto, pois raramente se veem cópias, mas sim reinterpretações dos modelos existentes, sendo frequentes as misturas de motivos das várias tipologias.